Escola Lacaniana

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Tempos difíceis

Maria Teresa Saraiva Melloni

 

Alguém procura una análise

Alguém procura una análise, tem um problema, precisa se livrar dele. “Isso se repete, “quando vi, já fiz”, nos diz.

Da mesma forma sua fala se repete, sem destino, se perdendo no ar. Não sabe o que diz. Só quer se livrar disso! Um, um osso que o impede de ser amado totalmente, o tempo todo e do seu jeito! Porém, é esse Isso – o inconsciente – que lhe impele a falar.

O Isso que fala é o mesmo do qual quer se livrar.

Mas há tempos que se fala para não ser escutado! Só demanda, demanda de amor!

É a presença real do analista, silenciosa, que pode dar a essa falação, um efeito de escuta!

Transformá-la em fala-a-Ser, um dizer da ordem da pulsão invocante, dizer que faz do Real um furo.

“A diferença entre ambas está em que a demanda visa a um Outro que deve estar imediatamente presente, ao passo que a in-vocação dirige-se a um Outro que não está presente senão como por-vir. A pulsão invocante é assim transferência no tempo”. (DIDIER WEIL, 1997, p. 16).

O que de fato, o sujeito reclama é o ressarcimento da perda simbólica – castração – cifra com a qual pagou pela sua entrada na linguagem.

Como fazê-lo abrir mão de tal reivindicação? Como acreditar que aquilo do que ele quer se livrar – o sintoma – resulta justamente da sua surdez pelo efeito metafórico da palavra?

Sabemos que a linguagem tem um eixo diacrônico, metonímico, no qual, um significante substitui outro significante, infinitamente. E outro, sincrônico, metafórico, em que um significante se sobrepõe a outro significante, produzindo um resto que interroga a verdade do sujeito. Ignorar essa produção metafórica é alienar-se à demanda do Outro, obturando a possibilidade de abertura para fazer passar o desejo. Esse resto que escapa na metaforização, retorna no real sob forma de sintoma.

Dar lugar de escuta a esse resto metafórico, fazer falar o sintoma é o que Lacan chamou de retificação subjetiva.

Nela, a palavra é tomada de poder, poder de conduzir o sujeito pelos desfiladeiros do real, onde haverá lugar para ecoar o ronco da verdade.

O sujeito já não é mais aquele que pensa saber o que diz, mas sim aquele que é dito pelo dizer. A palavra o ultrapassa, transgride o código, rompe com a retórica, e explode em forma de revelação!

“Vou dar um tempo, agora em janeiro e fevereiro, são tempos difíceis. Volto depois.”

Essa cliente repete essa recuada, sempre que surge algo relativo a dinheiro. Há aí um ponto sintomático que a faz silenciar. Mas o silêncio também é escutado, sob forma de cantilena, algo que se repete em infinita monotonia, que volta sempre ao mesmo lugar.

E o que cabe ao analista? Como fazer avançar com a psicanálise? Como escutar a recomendação de Lacan, para reinventar, inventar um jeito novo de manter viva a psicanálise?

São dias difíceis também para o psicanalista. Sempre! De janeiro a janeiro!

O que faria alguém que já tendo atravessado a experiência de una psicanálise, levando-a até o fim, se prestasse a se por nesse lugar difícil, de semblante de objeto para um outro?

Lacan nos adverte da destituição que nos espera ao final. Mas será que é só ao final?

Didier Weill inspirado por Nietzche fala do “nosso mito que desaparece”, referindo-se aos artistas e psicanalistas, que teriam como função, botar os limites a nu.

Haverá, para o analista, um céu azul para um vôo tranquilo, um mar que não faz jogar o barco, um amor garantido de seu lugar na transferência para essa travessia?

O analista vai entrar às cegas, no jogo da turbulência, da batida do mar obscuro da transferência, como um abnegado diante do que o analisado faz com a sua pessoa, para sustentar uma determinada cena fantasmática.

A situação analítica implica que o analista pague o preço da sua empreitada. Pague com a sua palavra, pelo que elas sofrem de transmudação, em se elevando ao lugar de interpretação. Pague com a sua pessoa, no que ela é tomada como suporte para os fenômenos transferenciais. E paga com o que há de mais essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir no cerne do Ser.

Aliás, acrescenta Lacan: “o analista cura menos pelo que diz e faz, do que pelo que é” (1998, p. 993). Ou seja, pela sua capacidade de se descolar das suas vertentes do que pensa Ser e se deixar perder no ‘sou onde não penso’. E ainda mais: “o analista é menos seguro em sua ação, quanto mais está interessado em seu ser” (1998 p. 994).

No manejo da transferência o analista está sozinho, nu, só assim estará livre quanto às suas intervenções. As regras, os ensinamentos, as orientações em nada vão poder lhe ajudar. Ou seja, ele se apoia numa prática do Real, na falta a Ser, sua ação na condução do tratamento lhe escapa, como o juízo que faz dela. Essa é uma questão central para a prática da supervisão, na medida em que que ela não pode funcionar como uma extensão da análise pessoal, nem como um porto seguro para um aprendiz de marinheiro.

A prática psicanalítica, seja na condução do tratamento, como na chamada supervisão ou controle, exige que o desejo do analista seja dirigido não a um objeto, mas sim a um sujeito barrado, ou mais propriamente dito, à barra do sujeito. Por isso, o desejo do analista é chamado de desejo puro. Nesse encontro entre duas faltas, nesse instante de suspensão temporal, o único objeto possível é o objeto a, que por sua total inconsistência, marca a impossibilidade do encontro e relança o desejo – objeto causa de desejo.

Essa é a trama do manejo da transferência.

Se o amor do Outro é insuficiente, é um amor furado, a saída é passar a amante, em vez de amado. Amante desse Outro que é o próprio Sujeito, também um amante furado. Assim, uma falta se sobrepõe à outra e o Outro, que não preenche o Sujeito, sustenta a falta, apostando no sujeito como desejante, amante, falante.

Mas se falamos em objeto a, lembramos da angústia. Porque?

Não só porque é no Seminário da Angústia que Lacan privilegia o trabalho com esse conceito, mas também porque o objeto a se localiza bem no miolo do nó borromeano, ali no lugar onde nem o simbólico nem o imaginário alcançam. No percurso de uma análise, é a maior aproximação com o Real.

A angústia, não é perda de objeto, não é a falta de objeto, mas ao contrário, é a sua presença, é a presença de um objeto maciço, um objeto que é o mais íntimo, o mais profundo, o objeto último, a Coisa, por isso, ela é o que não engana.

A angústia é sinal de desejo, mas por outro lado, é aquilo que ao analista, é vedado oferecer. É o desejo do analista, como função, que se articula com a causa, com a verdade, com o Real da estrutura, o ponto que serve de bússola para o horizonte, na condução de uma análise ao seu final.

No Seminário Ato analítico e no Seminário A Transferência, Lacan trata essa função, como um imperativo que se impõe ao final de uma análise. E diz mais, que são os sentimentos determinados pela relação com o analista, ou seja, a contra-transferência, que atropelam o analista no seu propósito.

“Toda vez que se leva suficientemente longe um discurso sobre a relação que mantemos, como Outro, com aquele que temos em análise, coloca-se a questão do que deve ser nossa relação com esse a” (Angustia P. 154) Ou seja, a relação com o objeto a é relação com a falta, e portanto, com o desejo, ou então, como vimos, com a angústia. Por isso, se não for o desejo do analista o que sustenta o analista em sua prática, será, por uma questão lógica, o desejo inconsciente do sujeito-analista que advirá.

E o que pode servir de bússola entre os escolhos dessas tempestades – Tempos difíceis?

O dispositivo do Passe

Ao sustentar essa questão, nos veio a ideia do passe, passe como uma formação sustentada, não por um mestre, uma Escola, una supervisão, ou mesmo por um analista. Porém, sustentada por um ato.

Na tradução de Irene Agoff do texto publicado na revista “Lettres de l’Ecole freudienne”, nº 15, junho de 1975 (pp. 185-193), Lacan situa o analista como produto de um ato e não como acúmulo de experiências. No prefácio da revista Dizer XV, Ana Paula Gomes e Flavia Chiapetta, citam Lacan, dizendo que “a proposta consistia em dissipar a sombra espessa do didatismo na formação do psicanalista. (201, pg 7).

Sendo assim, o passe aponta para um não saber, o levantamento de um furo no saber que remonta o encontro com o Real. É portanto, algo fora de qualquer domínio ou previsão. Por isso, penso que Lacan buscou o significante ‘dispositivo’ para designar o passe.

Dispositivo, em uma associação livre, pode nos levar a etimologia da palavra disposição. Um bom começo!

Mas dispositivo, também recebeu outras diversas acepções.

Em 67, quando Lacan escreveu a proposição para uma Escola e privilegiou o termo dispositivo, ele estava mergulhado em uma vasta de rede de ideias em torno do discurso e seus desdobramentos.

Foucault relacionava dispositivo com episteme e numa entrevista à revista Onicar em 1977, demarca o dispositivo como a rede entre um conjunto heterogêneo de relações entre o dito e o não dito”. Situava o dispositivo como “uma estratégia de relações de força, um ponto de ligação de elementos heterogêneos que formam um tipo de saber discursivo, ou não”. (Foucault, 2009, pg 244).

Por isso, Agambem propõe que somente uma profanação revolucionaria dessa lógica do sagrado, o sagrado da soberania, da propriedade, dos bens, pode devolver ao uso comum, o que foi associado a esfera do sagrado. Associa-se ao lúdico e propõe a reinterpretação constante que deve estar na base da relação do homem com a arte de viver. Opondo-se ao que ele chama de “uma unidade de forma de vida”, ele diz que a vida está diluída em diversas formas de vida, que variam de acordo com o contexto

Enfim… diante de tais circunstâncias, penso que teremos que avançar sozinhos, mas não sem Lacan.

O fato é que ao introduzir o dispositivo como paradigma do funcionamento da sua Escola, Lacan estava se eximindo de qualquer interferência. Ele se propunha a correr o risco e não estava preocupado em acertar. Ele chegou a declarar que do fracasso do dispositivo do passe, a psicanálise pode extrair seu alimento.

Sem o fracasso, a psicanálise não poderia operar, nem produziria qualquer hiância, apenas obturaria, fixaria, engordaria o sintoma.

 

O passe, enquanto dispositivo, tem como objetivo fazer brotar um saber não dito que há no Real, não o já sabido da experiência ou da teoria. À uma Escola, como diz Lacan, cabe prover as condições para que uma formação se dê, una formação do inconsciente, na qual o sujeito possa apreender o que se deu na sua análise.

É o que se espera obter com essa experiência, algo que de modo algum, pertence ao discurso do mestre, mas que seja fruto de uma profanação.

Entendo que as condições que a Escola oferece àqueles que desejam uma formação, são dispositivos, no sentido de que há nessa Escola uma disposição de recolher o que possa surgir nesse percurso – o desejo do analista

O desejo da analista porta, no seu bojo, o não querer saber tudo, o saber até onde se pode ir. Significa, portanto, renunciar a qualquer mestria, afrontando o real como imprevisto. Diferentemente do desejo de saber, o desejo do analista deve consentir em não saber, consentir ao real fora-de-sentido. Se não há consentimento ao não saber, não há ato analítico.

Se os dispositivos estabelecerem um regramento que antecipadamente emoldurem o Real a se desabrochar, o sujeito não fará nada mais do que aprender a manejar botões para fazer funcionar uma técnica e buscar aprovação da comunidade analítica. E assim, não apreendeu grande coisa.

O que se espera na experiência do passe não é uma aprendizagem e sim uma revelação.

Por isso Lacan procurou introduzir o dispositivo do passe e esperar o que dele iriam fazer os analistas, interferindo com a maior discrição possível.

 

 

 

“Si de lo que produce esa experiencia no tenemos  resultados más luminosos para ofrecerles, es a causa de esta discreción, que va mucho mas ala de la discreción que pertenece al orden de la espera. Por mi parte, y pido desculpas, me limito a esperar lo que de eso resultará efetivamente, incluído um modo muy distinto de recoger el testemonio”. Opção Lacanaiana online, nova serie. Ano 3, nº8, julho 2012.

O passador deve ser alguém no frescor do seu percurso, para que possa se deixar tocar pela revelação; alguém que possa se abster da prevenção, do dever, do compromisso e mesmo de qualquer julgamento. Só assim, a ele será um testemunho. Ao falar do passe na Proposição, o que está em jogo para Lacan, é o desejo do analista na sua mais pura singularidade e não o julgamento da sua capacidade.

“Se seguimos Lacan ao pé da letra, o que ele espera do passe, em 1975, ou seja, oito anos depois de introduzi-lo na Proposição, é que: no ponto em que alguém se considera preparado para ousar ser analista, ele possa dizer a alguém de sua própria geração, um par – não seu mestre ou um pseudo-mestre – o que lhe deu o vigor de receber pessoas em nome da análise” (LACAN, J. Conferencias e entrevistas nas universidades norte-americanas, in Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976, p. 15).

Lacan se referia ao funcionamento das sociedades até então funcionando, sob o modelo IPA, como demasiadamente prudente, subordinado a normas e leis regulamentadas, como um eterno apelo ao Mestre.

É isso que Lacan bradava aos estudantes na revolta de 1968, alertando sobre a transformação do saber em uma mercadoria. Ele se referia ao funcionamento das universidades, onde a hierarquia semeava cobiça e lutas selvagens.

Mas estarão hoje, as chamadas Escolas Lacanianas, livres de tais espetáculos?

Conclusão

Mas porque passamos dos Tempos difíceis para o dispositivo do passe?

Tempos difíceis, para um analista é seu solo fértil.

Foi isso que Lacan quis dizer com o fracasso do Passe, quando ele afirmou que “não cessa de passar o passe”. Lacan, J. (1976-7) Aula de 8 fevereiro 1977

Essa insistência é a operação que sustenta a polêmica afirmação de que “o analista só se autoriza de si mesmo”.

Quando lançou a Proposição sobre o passe, Lacan relacionou o final de análise a uma passagem ao ato, enquanto o passe – o ato de passagem de psicanalisando a psicanalista – seria um re-ato e estaria relacionado com o ato de seu analista em ter suportado a transferência.

A condução de uma análise, ou seja, os Tempos difíceis, também seria um re-ato, no sentido que tais dificuldades remetem à análise do analista.

No entanto, depois de passada pelo passe, essa experiência foi bombardeada pelo clarão do raio do Real e o ensurdecedor ronco do trovão, dela só restando um eco: passe… passe…

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGAMBEM, G. Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 244

DIDIER WEIL, A.  A Nota Azul Ed Contra Capa, Rio de Janeiro, 1997

LACAN, J. (2003) “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 258.

_________ (2003)  Nota italiana”. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

_________ (1976/1977) Le Seminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Inédito. HTTP://www.valas.fr/Jacques-lacan-l-insu-que-sait-de-l-une-