Escola Lacaniana

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O Inumano e a Formação do Psicanalista

Sérgio Cwaigman Prestes¹

A Ciranda deste ano tem como temática central o inumano. Trata-se de um tema que nos leva a refletir sobre o Mal-estar na Cultura. É um texto bastante conhecido aonde Freud redefine o lugar da psicanálise em sua relação com a ciência. Ele diz: “meu interesse após ter feito um longo desvio pelas ciências naturais, medicina e psicoterapia, retornou aos problemas culturais que me haviam fascinado muito tempo antes, quando eu não passava de um jovem com idade apenas suficiente para pensar”.

 
O Mal-estar na Cultura é um texto cuja questão fundamental concerne ao gozo. Freud se esforça neste trabalho para dar conta de uma insuficiência de gozo, de uma frustração permanente, de uma falta de gozar do homem, mas ao mesmo tempo se inquieta com o possível retorno do gozo na forma do sentimento de culpa.

 
A certeza de Freud é que toda renúncia pulsional, condição da civilização ou de qualquer grupo, se paga com um retorno do gozo. Quanto mais se é virtuoso, mais se introduz o sentimento de culpa. Quanto mais virtuoso mais culpado. A renúncia implica em uma satisfação que alimenta o sentimento de culpa. O supereu exige a renúncia pulsional e, ao mesmo tempo, se nutre dela.

 
Então o mal-estar da cultura não advém das exigências sociais contrárias as pulsões, mas do fato de que nessas exigências a satisfação do supereu está presente. Logo, o insuportável não são os outros, mas, antes de tudo, o insuportável está em cada um de nós. Como lidar com o insuportável que nos habita é da ordem do singular, do um a um, mas ninguém lida com ele senão através e por causa dos outros.
Lacan, na Nota italiana, põe em tensão o humano e o inumano ao falar do “clamor de uma pretensa humanidade” em contraposição a posição de rebotalho do analista que lhe é própria na direção do tratamento.

 
Esse inumano é o que se deve exigir que o analista tenha circunscrito em sua própria análise. “Circunscrever, diz Lacan, a causa de seu horror de saber” ser um desperdício, um rebotalho, um resto, mas também levá-lo ao entusiasmo.

 
Aliás, isto é muito importante, se o analista não é levado ao entusiasmo, diz Lacan, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance. O entusiasmo, então, é o divisor de águas entre o final da análise e o passe.

 
Então, circunscrever o insuportável do próprio horror é bem diferente de jogá-lo na cara do outro, fazendo dele objeto do meu ódio, que é a semente do racismo e de várias formas de segregação, inclusive, na própria escola, quando a saída para muitos impasses é expulsar determinado membro.
Já o clamor de uma pretensa humanidade nada tem haver com uma suposta bondade dirigida aos outros. Ele tem haver com o que há de comum, com o que há de universal em cada um de nós e que é possível ser compartilhado. Não é o caso do inumano que diz respeito a algo da ordem do singular, que não entra no laço social, que não é coletivizável e que funda o real do sintoma a ser subjetivado na análise.

 
Então, podemos dizer que é um duro golpe no narcisismo o analista saber-se um resto, um desperdício, tanto na condução de um tratamento, quanto em sua inserção no mundo. “Só existe analista, diz Lacan, se esse desejo lhe advier, que já por isso ele seja rebotalho da dita humanidade.”

 
Isso é algo muito mais complexo do que o oportunismo de se fazer expert nos sintomas da moda. O que seria da Psicanálise se tivesse analistas, tais como alguns terapeutas, especializados em fobias, depressões, ataques de pânico, transtornos alimentares e por aí vai.

 
Devido a esta especialização crescente acabam surgindo diversos grupos que são verdadeiras associações de gozo tais como o MADA, mulheres que amam demais anônimas, o HADA, homens que amam demais anônimos, os alcoólicos anônimos que giram, basicamente, em torno da identificação com o sintoma.

 

Nesses grupos a cura do sintoma é algo secundário, o mais importante é a constituição de um laço social a partir dele.

 

Isso tudo é um problema, diríamos, um grande problema, mas um problema ainda maior são os próprios psicanalistas caírem no engodo de fazerem de suas escolas de formação uma associação de gozo. É a tentação de ficarmos somente entre nós, gozando juntos, falando uma língua que, às vezes, nem mesmo a gente entende e, ao mesmo tempo, identificados sintomaticamente com a Psicanálise. Daí a importância de estabelecermos uma interlocução permanente com outros saberes onde nos obrigamos a refletir sobre o modo através do qual o psicanalista pode se fazer presente na experiência da Escola e no discurso social.

 

Esta interlocução com outros saberes não significa abdicar de nossa clínica, já que a clínica é a única leitura que o psicanalista pode oferecer da realidade. Clínica do real, clínica daquilo que faz obstáculo ao projeto científico de anulação completa do sujeito e do próprio inconsciente. A ciência é também, à sua maneira, uma clínica, mas uma clínica sem sujeito, sem passagem pelo sentido e que prescinde da transferência.

 

Mas, apesar dos avanços da ciência e da religião, que cresce num ritmo exponencial, tanto o inconsciente, quanto os sintomas tem a sua permanência assegurada, já que ambos dependem do real da linguagem, dependem disso que escapa ao sentido e a significação. A grande questão é saber se os psicanalistas vão continuar sendo, no futuro, o destinatário dos sintomas.

 

Lacan, inclusive, aventou a possibilidade da humanidade, um dia, chegar a se curar da psicanálise. Espero que esse dia não chegue, mas se chegar, não será sem o recurso do esquecimento movido pela paixão da ignorância que é a forma mais comum de se lidar com o sofrimento. É por isso que nós nos interessamos tanto pelo sintoma para que ele não caia no esquecimento.

 

 

Como se pode ver, apesar da insistência dos psicanalistas, e a Ciranda é um bom exemplo dessa insistência, não se pode esperar um grande destino para o sintoma num mundo aonde cada vez mais reina o esquecimento e a figura emblemática do indivíduo alienado de si mesmo carente do sentido de responsabilidade. Para um estado assim está claro que é mais confortável uma terapêutica que poupe o sujeito de sua angústia do que fazer dela uma questão sobre o desejo.

 

Na contramão de tudo isso vai o discurso analítico e nesse sentido a Escola pode constituir-se num bom lugar para fazer avançar a psicanálise frente aos efeitos do mal-estar na cultura, mantendo acesa a chama do desejo. No entanto, estar numa Escola de formação de psicanalistas, não é algo muito simples, dado que somente alguns chegaram, de fato, a circunscrever o insuportável do próprio horror de saber sobre a castração. O resultado é que a Escola fica sujeita a formação, inevitável, de diversos grupos que acabam trazendo uma grande intolerância no convívio entre os pares. A saída seria acabarmos com a formação de grupos na Escola?

 

Para complicar um pouco mais as coisas, trago uma citação de Lacan, no Seminário RSI, onde ele propõe diretamente que nos identifiquemos ao grupo: “É certo que os seres humanos se identificam a um grupo, quando não o fazem estão em vias de serem internados, estão para retirar-se do mundo. Mas não digo por isso a qual ponto do grupo tem que identificar-se”.

 

Então, para que os analistas não sejam internados num asilo de loucos, precisam identificar-se ao grupo, mas não a qualquer ponto do grupo? E de que ponto, em particular, se trata? O que teríamos em comum que permitiria que nos identificássemos?

 

O fato, por exemplo, tão comum, de fazermos análise com o mesmo analista? Ou o fato de pertencermos à mesma Escola que, lógico, é mais analítica do que as outras que são mais universitárias? Ou ainda formarmos grupos baseados nos lugares de onde cada um provém?

 

Creio que não se trata de nenhum desses traços, mas, talvez, do desejo comum de subjetivar o insuportável, de subjetivar o inumano para bem dizê-lo. Bem dizer o insuportável de mim e dos outros também. Na medida em que reconheço o insuportável em mim, talvez me torne, não diria mais agradável, mais suportável para os meus pares.

 

Então, para finalizar, gostaria de trazer o final de um poema de Jorge Luis Borges, intitulado “Buenos Aires”, com o intuito de mostrar o que, de fato, pode nos unir, pois, afinal, somos um grupo, um grupo que se pretende analítico.

 

Une-me a Buenos Aires o espanto, não o amor.
Talvez por isso é que eu a quero tanto.

 

BIBLIOGRAFIA

 

FREUD, S. Um Estudo Autobiográfico. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1972.
______. O Mal-estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XXI, 1972.
LACAN, J. Nota italiana. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
LACAN, J. O seminário, livro 22: R.S.I (1974-75). Seminário inédito.

 

¹Psicanalista, Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise – RJ, Doutor em Psicologia pelo IP/UFRJ.