Escola Lacaniana

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A HORA DO ENCONTRO É DESPEDIDA

A HORA DO ENCONTRO É DESPEDIDA

Maria Teresa Saraiva Melloni

…São só dois lados da mesma viagem. 

O trem que chega é o mesmo trem da partida…

 

Já lá se foram cerca de 20 anos quando um grupo de psicanalistas, não sem romper com laços importantes da sua formação, fundou a Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Aproximadamente 10 anos depois, a Escola é atravessada pela primeira experiência do passe, uma experiência singular, que embora tenha provocado algumas perdas, marcou de forma indelével todos que nela tomaram parte, mesmos os espectadores silenciosos. Foi um horror, disseram muitos! Um tsunami, diríamos hoje, mas não advindo da natureza, e sim do real do inconsciente — na fala e na linguagem — através do depoimento de Teresa Nazar. 

Hoje, a Escola estabelece o seu dispositivo do passe e não por mera coincidência se estabelece estatutariamente enquanto instituição.

Na Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan diz que um analista só se autoriza de si mesmo. Não que a Escola não possa garantir que um analista dependa de sua formação, mas ele pode querer essa garantia e para isso há que tornar-se responsável pelo progresso da Escola (Lacan, 2003).

O tempo do autorizar-se

Foi necessário um tempo para que um analista sentisse a necessidade de justificar-se diante dele mesmo — não sem os seus pares — quanto ao que se deu na sua análise. E a Escola, nesse tempo?

Se a lógica que sustenta a psicanálise, desde Freud, é a lógica discursiva, não se pode esperar que uma escola de psicanálise se proponha a garantir a formação de um psicanalista. Há um real em jogo, na psicanálise que escapa a qualquer previsão e exige que cada um se sustente na experiência da sua prática, 

Assim, uma escola só pode garantir a relação que cada um psicanalista mantém com a formação, na medida em que ela a testemunha. A razão de ser de uma psicanálise lacaniana, no seu retorno à experiência inaugural de Freud, repousa exatamente sobre o impossível da terapêutica, da reparação e do restabelecimento a um estado primário. Esse ponto é, a um só golpe, a origem e o limite de uma psicanálise. 

Quando podemos supor que uma Escola esteja pronta para garantir ou testemunhar a experiência de uma formação?  

Não se pode determinar quais os critérios e as condições que dirão de um tempo bom para uma Escola se ocupar dos seus dispositivos, seja o reconhecimento de um AME, seja o acolhimento de um pedido de passe. Trata-se de operações lógicas, sempre presentes desde a instituição de uma escola lacaniana, que produzem consequências e, ao mesmo tempo, resultam dos efeitos da formação dos seus analistas. O passe, esse dispositivo que se oferece ao final de uma análise, já aí está desde o início, à espera e à espreita. É um momento lógico de concluir o tempo para compreender.

Da mesma forma que, para os lógicos, a assertiva do prisioneiro que consegue sair da prisão é falha, o final de uma análise é comparado por Lacan a “uma sombra espessa”, que o passe visa dissipar. É justamente por isso que Lacan, no seu discurso na Escola Freudiana de Paris, em 6 de dezembro de 1967, ao comentar a acolhida da sua proposição, diz que, embora tenha provocado algum discernimento, seu ato não foi precedido de qualquer intenção, portanto, ultrapassa o tempo de compreender. É por isso que ele propõe que nos interessemos pelo passe, já que aí, o ato pode ser apreendido no frescor da experiência em que se produz. O sucesso do ato psicanalítico só chega ao psicanalisante no que ele tem de tropeço, de fracasso.

Ainda na Proposição, Lacan se refere ao título “análise original”, usado por Freud, ao falar da sua própria análise, para endossar a afirmação de que ele não teria feito uma autoanálise. A partir dessa observação, Lacan conclui que “a verdadeira análise só pode ser a segunda” (Lacan, 2003 p. 258), na medida em que é da repetição que se faz o ato. Certamente, não se trata aqui de uma questão cronológica, e sim de um tempo lógico, de um corte pelo qual o objeto, ao se fazer perda, resta como causa no sujeito. É pela escansão do tempo de compreender, como o efeito do instante da dúvida no sofisma dos três prisioneiros*, que opera a destituição subjetiva e a queda do sujeito suposto saber. O ato escala sempre, tanto ao psicanalista como ao psicanalisante

Este ponto de descontinuidade no saber sobre o desejo do sujeito desdobra-se topologicamente no lugar do “des-ser” do psicanalista. Lacan situa aí o que resta da ingenuidade de que a fantasia garante o saber sobre o desejo, assim como de que há a garantia de que, ao final de uma análise, está à espera, o desejo de ser psicanalista. Ao final de uma análise, no lugar dessa ingenuidade, o sujeito se depara com a impossibilidade de se situar na articulação representada entre um significante e outro, como também com a sua queda no real, ou um salto no vazio, já que não lhe é mais accessível o apoio do Outro da posição fantasmática. A questão do final de análise, portanto, está presente desde o início, orienta a direção do tratamento, é indissociável do seu fim e, por isso, reduz a questão do desejo a um limite para a suposição de saber e ao “des-ser” do analista. 

A base da condução de uma análise — a associação livre — consiste, sem dúvida, em ‘deixar fazer’, segundo o manejo de um deslizamento significante, de uma poesia, de um estilo de gozo, indispensáveis. O que resta ao psicanalizante é o fazer do sujeito, pela via da associação livre, de um significante a outro, mantendo a suposição de saber do lado do analista. No entanto, o analista, na medida em que haja experimentado a queda e a exclusão desse lugar, introduz a referência a um lugar terceiro, referência a um saber sem sujeito.     

Entretanto, isso é insuficiente para caracterizar a posição de analista. É a distinção entre o que fez uma análise e o que se faz em ato na formação de um psicanalista que deverá restar no passe, como um testemunho trazido para a psicanálise, numa escola lacaniana. Foi no intuito de esclarecer isso que opera no momento de concluir, sem jamais ter passado pelo crivo de uma lógica, que não passa pela cabeça, nem pelo pensamento dos passadores, nem de nenhum júri, que Lacan propôs o dispositivo do passe.  

O tempo de luto

O desejo do psicanalista é o lugar de onde se está fora sem pensar nele, mas no qual encontrar-se é ter saído para valer, ou seja, não ter tomado esta saída a não ser como entrada (Lacan, 2003 p. 270).

Na Proposição de 9 de outubro de 1967, ao trabalhar o seu axioma: “o analista só se autoriza de si mesmo” (Lacan, 2003, p. 251), Lacan enfatiza que, diferentemente das chamadas Sociedades, a sua Escola só garante que o analista dependa da sua formação. Refletindo sobre os efeitos de seu ato, entre seus pares, em dezembro seguinte, ele considera que, embora tivesse fundado a sua Escola, “tão sozinho quanto sempre esteve” (Lacan, 2003, p. 235), isso não significa que ele seja o único, senão, com quem falaria? Enquanto ato, a fundação da Escola implica numa solidão, do qual é seu dever ético renunciar, na medida em que se descola do ato, já que dele não é o agente. 

No Seminário da transferência, falando da posição do analista, Lacan diz: […] “o analista deve se ausentar de todo ideal do analista” (Lacan, 1992, p. 371), acrescentando que, no campo do desejo não há objeto que valha mais que outros (Lacan 1992, p. 281). Essa é a configuração do que Lacan chama de redução da função significante, na qual, o analista vai experimentar o risco de sustentar uma suposição, até o seu próprio desaparecimento. O luto que aí se configura está na raiz do desejo do analista. 

Mas o que se passa, que alguém que haja sofrido tal experiência, resolva se oferecer como semblant de objeto, sabendo que daí não decore nenhum privilégio? O que faz com que aquele que já chegou ao ponto de identificar cada traço, cada pedaço, até o esgotamento final, deste objeto que um dia foi, o que o faz acompanhar um outro,no caminho para o luto?

Sobre isso, assim como Lacan quando da fundação da Escola Freudiana de Paris, dando as boas-vindas aos seus analisandos, nós aqui nos interrogamos neste trabalho: por que Lacan privilegia os não analistas, particularmente, como se a presença deles tivesse a propriedade de fazê-lo calar? (Lacan, 2003). Se o fazemos calar, a nós, cabe um dizer.

Ele contrapõe a surpresa e o frescor dos questionamentos dos não-analistas a uma precariedade dos AEs, identificados por uma produção estagnada e uma pregnância narcísica e competitiva, que revelaria a outra face da impotência, introduzida na hierarquia.

Por conservar nesse momento a essência do “des-ser” que ainda não se deu, o passador, no dispositivo, poderá testemunhar a passagem daquilo que, para ele, terá a dimensão de um luto. O testemunho que eles colhem, nenhum júri é capaz de colher, nem lhes permite julgar. Sendo assim, nada lhes garante ascendência, tampouco ao júri; ao contrário, a este cabe a elaboração de um trabalho de interesse aos psicanalistas, transformando uma psicanálise em intensão em psicanálise em extensão (Lacan, 2003).  

Portanto, é entre os não-analistas, continua Lacan, que é possível fazer emergir o passe, fisgando o desejo do analista, antes que este sofra uma amnésia do ato que o fundou. 

Como fazer bom uso da experiência de Lacan sem cair no anacronismo? Sem roubar o frescor da experiência da nossa Escola? 

Na medida em que o umbigo do sonho, a sua origem, é o que escapa à revelação; na medida em que a verdade só pode ser dita como não toda; o que resta aos psicanalistas senão lançarem-se à própria experiência? É justamente essa função de passador da experiência da psicanálise que tanto Freud quanto Lacan esperavam de um psicanalista. Se uma psicanálise se dá a partir de um corte, o tempo do ato psicanalítico é sempre contemporâneo, ou seja, o tempo presente e seu constante desvanecer, perdendo-se no passado.    

O tempo do ato

Agambem (2009) associa o contemporâneo com o intempestivo, entendendo, dessa forma, a contemporaneidade como “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância”. Como uma revolução, este movimento busca a aproximação de um outro tempo, que está para além do tempo cronológico. Não apenas do que está por vir, mas também do presente e de seu retorno incessante à origem, como numa insistência no fazer da arte. 

O tempo de uma análise é um tempo de constante reedição do presente, a partir das marcas deixadas pela experiência. Na fantasia, o sujeito se vê às voltas com as forças da demanda, pegadas do desejo do Outro, fixadas no disco que ele, no privado da transferência, carrega sem saber, como prisioneiro da falta do Outro. Como no retrato de Dorian Gray, sucessivos deslocamentos se acumulam enquanto significações, cujas marcas vão desenhando e deformando o quadro que ele mantém no segredo da prisão. Por um lado, o ser sem pensar; por outro, o pensamento sem o eu. 

Assim, no Seminário XV –  O Ato Psicanalítico, Laca usa o quadrângulo de Klein, para mostrar que não há saída, a operação da alienação é uma escolha forçada, que determina o ser: um ser sem eu(je), um sujeito fixado como a, na fantasia do Outro. No campo da linguagem, o mesmo significante que do campo do Outro, constituiu o sujeito, cobra o seu preço, reenviando-o a outro significante, deixando um corte significante que se reedita ao final de cada sessão. Mas se o sujeito em análise é levado a pensar, ele busca a operação verdade, que só se apresentará no dizer enquanto não-toda: pensamento sem o eu (je), marcado como faltoso. Essa é a posição de chegada de um sujeito em análise. O acesso à castração simbólica que a transferência proporciona, pode levar essa falta a categoria de perda, revelando para o sujeito a sua verdade, ou seja, que não há significante que possa lhe dar um ser, que não seja a sua falta a ser. Situação de máxima verdade accessível à subjetivação e passo antecedente à destituição subjetiva. Esta operação convoca por outro lado, o objeto a, causa de desejo, do qual o analista faz semblant. Pela via do desejo, marca-se a falta; pela via do gozo, a perda, portanto não há apelo ao significante, nem ao Outro da fantasia e o saber não é mais suposto, em seu lugar advirá o objeto a, agora como causa da divisão subjetiva, causa de desejo. Lacan denomina este ponto de chegada, como o vértice do impasse, a partir do qual torna-se necessário um segundo movimento que retome o primeiro em um lugar terceiro. 

Lacan compara essa passagem com uma passagem ao ato, como forma possível de responder à angústia que então advém. É a esse estado de emergência provocado pela suspensão do tempo para compreender, que o dispositivo do passe, com estrutura de ato, vem estabelecer uma produção, uma escrita.

O objeto a se destaca da linhagem de objetos de recuperação de gozo, inscritos na cadeia significante enquanto faltosos e cai enquanto letra, que o escreve como perdido. Daí advirá um psicanalista.

Um mais ainda

Esse trabalho surgiu a partir da insistência de nodular o que Lacan estabeleceu como dispositivo do passe. Ao finalizarmos, procuramos estabelecer subtítulos, organizá-lo em tempos — tempo do autorizar-se, tempo do luto e tempo do ato – buscando uma cronologia que nos ensinasse sobre o que se passa na evolução de uma análise.

Mas, ao contrário de Oscar Wilde, não pretendemos ceder à tentação, ao preço de esconder no sótão o quadro com a pintura do original. Ao final de uma análise, não se conclui uma hipótese, nem se finaliza uma história, restam fragmentos. O dispositivo criado por Lacan não busca resgatar o que se passou numa análise, ao contrário, propõe uma escrita do que aí não se passou, que submetido a uma operação lógica, poderá se escrever enquanto perda no “que se faz em ato na formação de um psicanalista”, conforme dissemos. 

Portanto o eixo que orientou este trabalho foi a compreensão da temporalidade lógica que conjuga o deslocamento do sujeito no eixo da alienação, através do desfiladeiro de significantes, com a repetição comandada pela verdade do lugar de objeto que ele ocupava na cena fantasmática em que foi constituído. Tomamos o conceito de temporalidade lógica para pensar o limite de um processo cronológico, ponto de impasse onde não há evolução possível, queda, portanto, da suposição de saber.

Sendo assim, compreendemos que ao propor o dispositivo do passe como um esforço de transmissão do privado de uma análise, Lacan não esperava uma confissão e sim uma invenção. O dispositivo do passe é uma tentativa que tanto o passante como o passador vão se propor a arriscar, para recolher o que resta do esquecimento daquilo que se perdeu numa análise, daquilo que não serve para nada, salvo para fazer comparecer no real o fracasso do recalque.

Há que esperar um tempo para o passe, um tempo bom, uma manhã de maio, uma temperatura amena para que se abram as janelas do sótão, deixando entrar a luz necessária para que se desvelem as marcas presentes de um passado do retrato. 

 

Referências bibliográficas:

 

Agambem.G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Argos, S. Catarina: 2009.

Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967, Outros escritos. Zahar, Rio de Janeiro: 2003.

_______. Discurso na Escola Freudiana de Paris, Outros escritos. Zahar, Rio de Janeiro: 2003.

_______. O Seminário, livro XV. 1967 (inédito).

_______. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada, Escritos. Zahar, Rio de Janeiro: 2003.

_______. O Seminário livro VIII – A Transferência, Zahar, Rio de Janeiro: 1992.

Platão. O Banquete. L&PM, Rio de Janeiro: 2010.