Escola Lacaniana

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2020, um ano que vai durar além dele

Entramos em dezembro de um ano que atravessamos com perplexidade, angústia, medo, sofrimento e dor frente às perdas de entes queridos e muitas incertezas. Trazemos conosco duas percepções paradoxais: o tempo voou tanto quanto se arrastou. Vimos das janelas manhãs e noites se alternando, dias longos e velozes de trabalho online, outros lentos e monótonos, de espera e apreensão.

Distanciamento foi o termo que decretou a nossa condição de vida por muitos meses. As famílias se trancaram e o convívio tenso, intenso e tão próximo produziu distintas situações. Muitos pais e filhos criaram ou revisitaram formas de diversão e tolerância,  mas muitas famílias sofreram com antigos problemas de relacionamento. Casais se formaram e outros se separaram. Amigos não puderam se encontrar, estudantes não foram à escola e à universidade, as atividades físicas ficaram restritas a pequenos espaços domésticos. Assistimos pela TV e redes sociais a comoção  do mundo diante de tantas perdas. Vimos a intolerância, mas também a solidariedade. Empatia seria a palavra crucial desse ano?

Descobrimos as lives! De repente, já não aguardávamos o capítulo novo das novelas: ficamos atentos às agendas de shows e eventos realizados nessa nova modalidade. Momentos emocionantes, em que nos reencontrávamos com nossos artistas preferidos, alcançando a breve alegria em tempos difíceis. Passamos a frequentar reuniões, palestras, debates, seminários e cursos online através de diversas plataformas disponíveis. O trabalho se transferiu para a casa, em regime de home office.

Nós, brasileiros acostumados com fantasias e máscaras de carnaval, experimentamos as máscaras de proteção, cobrindo nossos rostos, sorrisos e outras expressões. Elas acarretam uma percepção mista,  entre a segurança e o mal-estar. O sentimento predominante nesse período de pandemia e distanciamento tem sido ambíguo: a percepção de proteção vem acompanhada de certo horror e angústia diante do futuro e das incertezas. Os sonhos de angústia e pesadelos frequentam nossas noites mal dormidas.

O uso de máscara tornou-se também um marcador político. Seguindo a tendência à polarização, os adeptos das medidas de proteção indicadas pela OMS seriam aqueles que se posicionam do lado da Ciência e da democracia; aqueles que desrespeitaram essas medidas estariam do lado do negacionismo. As medidas de flexibilização trouxeram maior complexidade à questão: até onde e de que maneira podemos nos expor e ao nosso vizinho ou próximo? Acontece que a sensação de risco e o medo é, em grande parte, subjetiva: vários fatores psíquicos podem ser decisivos para uma maior exposição ou não ao vírus. Definir com exata precisão o que é seguro ou não, a partir das medidas de flexibilização, é impossível. O fato é que, para alguns, o prolongamento do distanciamento social traz conforto, conveniência e segurança; para outros, é um verdadeiro estado de sequestro ou prisão. Assim, vamos seguindo com o ingovernável desses tempos… Freud propõe que, diante do real ingovernável, alguns incorrem no excesso e outros, na ausência.

Um jovem analisando, que segue o distanciamento social com muita restrição devido à vulnerabilidade de alguns membros da família, decretou: “Haverá Réveillon, mas vamos continuar em 2020”. Essa breve afirmação veio reforçar a ideia que faço chegar a vocês, através do título proposto: 2020, um ano que vai durar além dele … 2020 marca a virada entre séculos, quando a crença no casamento inabalável entre ciência e tecnologia sofre um grande abalo. Esse campo constituído pelo homem não pode responder imediatamente – nem completamente – aos desafios atuais. Isso marca nossa entrada num novo século: 2020 produz uma fenda ou um corte no discurso científico, em sua pretensão de substituir as grandes religiões. Reaprendemos que fazer ciência é incluir o real como aquilo que escapa ao campo simbólico. 2020 não é apenas um marco na contagem do calendário cristão, é uma entidade, cuja sombra nos acompanhará de perto e deixará o registro de sua presença na História. “O mundo não será mais o mesmo”, temos nos repetido. “Bem-vindos ao deserto do Novo Anormal” – fazendo aqui referência a Slavoj Zizek. Viveremos incertezas e inquietações que nem as religiões ou as ciências poderão nos alentar? Acreditar na ciência é acreditar nos limites do homem quanto ao domínio da natureza, da vida e do universo.

Lacan nos provocou ao afirmar que a “Religião triunfará”. Talvez ele destaque ali o papel alentador da Religião quanto ao impacto do encontro marcado com o real – encontro vivido pela humanidade, em distintos momentos da História. Lacan é um anti-humanista, se entendemos com Albert Camus que os humanistas não acreditam na “Peste”, nos flagelos humanos: “O flagelo é irreal, é um sonho mau que passará”, escreve Camus em A Peste.

Estamos aptos a compreender o nosso tempo? Somos contemporâneos frente ao que nos acomete? Giorgio Agamben propõe que, para sermos contemporâneos, precisamos aderir ao nosso tempo com certa distância, com certo anacronismo. Alain Badiou afirma que o real nos impõe o seu retorno, não como conceito, mas como experiência que desafia as utopias e ideologias criminosas e totalitárias. A miséria, a pobreza, a guerra, a morte, a instabilidade econômica são restos do real ingovernável que O Mercado quer varrer para debaixo do tapete. A pandemia veio nos revelar o real presente em nosso cotidiano. Estamos, sim, desamparados em nossa condição estrutural – não há o Outro do Outro. 2020 nos amputou uma perna e deveremos seguir mancando, lançando um novo olhar sobre os campos de saber.

É curioso que a Psicanálise, declarada morta, tenha recuperado certa reputação em tempos de tanta angústia. Fomos surpreendidos por um evento que abalou nossas certezas e sensação de poder de domínio sobre o universo. O encontro com o real teve os seus efeitos: angústias; depressões; quadros fóbicos; acometimentos no corpo; passagens ao ato. O distanciamento e o desamparo geraram uma necessidade de falar, para alguém capaz de escutar, aquilo que “não faz sentido”. Muitas pessoas, que me procuraram, acusaram um constrangimento ao confessarem que sofriam de algo que não conseguiam entender ou identificar. O mundo da informação, das intervenções normativas, das pílulas, do sentido e da compreensão, já não podia acolher ou abrigar “o incompreensível”,  experimentados por muitos que me procuraram. Passei a escutar intensas e numerosas manifestações de angústia, muito variadas em termos de sua apresentação fenomenológica ou sintomática. A pandemia, apesar de gerar um imperativo de produção em home office, em alguns casos, pôs em suspensão o indivíduo das ações e empreendimentos, dando lugar ao falante, fraturado pelo encontro com o real do desamparo e da morte. É na condição de dividido que um sujeito pode interpelar um outro que possa saber, que esteja suposto a lhe responder a pergunta “insensata”: do que estou sofrendo? Essa condição é fundamental para que uma análise possa acontecer.

Nesse período pandêmico, psicólogos, psicoterapeutas e psicanalistas foram muito requisitados. Acometimentos psíquicos geradores de sofrimento e dor foram trazidos para os atendimentos online. A busca por um espaço terapêutico que pudesse aliviar os efeitos angustiantes e traumáticos da pandemia se intensificou numa proporção surpreendente. Assim, as demandas se dirigiram a psicólogos e psicoterapeutas de diferentes abordagens.

Levando em conta esse contexto em que o campo psi foi muito procurado, me pergunto o que diferencia a psicanálise das psicoterapias? Será que os resultados terapêuticos são tão distintos? O tempo levado na travessia de uma psicanálise não seria uma desvantagem para o método freudiano? O sofrimento, os impedimentos psíquicos de um sujeito e seu pedido de ajuda justificam os esforços e as intervenções daquele que acolhe uma demanda dessa espécie. O bem-estar psíquico, a autonomia e o convívio social, geralmente, são resultados esperados por ambas as partes envolvidas. Usufruir das potencialidades do corpo e da mente são perspectivas de bem-estar no senso comum e nos padrões de saúde.

Não podemos dizer que o bem-estar obtido pelos resultados terapêuticos não seja levado em conta numa análise, mas, talvez, possamos verificar que o sujeito a comparecer na direção de um tratamento não seja aquele de quem se espera um ideal de cura pelos padrões médicos ou psicológicos. O sujeito atravessado pelo inconsciente tem o seu estatuto distinto da Psicologia: é um sujeito dividido entre o saber e a verdade . Esse sujeito não está dado de antemão, ele não responde a nenhum ideal normativo senão que ele se apresenta de forma singular, surpreendente, pontual e evanescente. Ele não pode ser definido ou falado por um outro, ele só pode advir do fato de que o humano é falante: é aquele que fala a um outro.

A Psicanálise, através da regra fundamental da associação livre, sustenta que um suposto falante se dirija a um outro na condição de suposto saber. O que pode permitir o comparecimento de algo novo e inédito: o sujeito do inconsciente incide entre um dito e uma escuta. Não há resposta antecipada por nenhuma normatividade de saúde, aquilo que o próprio sujeito estranha, desconhece e nele faz sintoma terá que ser atravessado ao longo de uma análise, na tentativa de uma posição responsável e desejante: ali, onde o sintoma, que representa o sujeito, é impedimento e impotência, o desejo deve advir, mas não sem o preço das perdas dos ideais do ser: a condição do humano é faltosa e isso pode resultar na causa e não no destino funesto da existência. A perda do ser pode implicar numa margem de liberdade que põe o sujeito em movimento, tendo a falta estrutural como causa real ao desejo. Essa é a aposta no inconsciente frente ao luto, à melancolia, à depressão, à inibição, e outras dores de existir, impeditivas à posição desejante.

Em março desse ano, as sessões presenciais foram suspensas, de acordo com as medidas que o lockdown nos impôs. A pergunta que me ocorreu foi se eu poderia sustentar minha clínica exclusivamente no modo online? Antes que fosse um problema para os meus analisandos, isso foi uma questão para mim. A resistência era, a princípio, minha. As telas de computadores, tablets e smartphones eram janelas para um universo que eu frequentava de modo restrito. A ideia de transportar meu consultório para a tela do meu celular era-me estranha. Porém, me surpreendi com os inúmeros pedidos para manter as sessões nessa nova modalidade. Não me restava outra coisa a fazer senão aceitar o desafio.

A situação analítica tem para mim uma montagem teatral. O setting é composto por um ambiente intimista, cuja peça central do cenário é o divã e onde dois personagens estão em cena: o analisante e o analista. Digo personagem, pois ambos estão restritos a esse contexto. Para além dos limites dessa cena e lugar, não mais podemos reconhecê-los. A narrativa se constrói em torno de uma trama que nós costumamos chamar de fantasia do sujeito. Nas entrelinhas do texto, subjaz o que está oculto para ambos os personagens e se revelará de forma surpreendente. Essa é uma forma de me remeter ao teatro freudiano que está em cartaz na minha vida cotidiana há algumas décadas, mas cujo desfecho da peça nunca me é dado de antemão.

Essa comparação com o teatro me ajuda a passar para vocês as minhas dificuldades com as sessões online, pois, inicialmente, havia perdido a referência dessa estrutura teatral, que envolve o ambiente, o cenário, os personagens e um fenômeno fundamental ali presente: a transferência.

Acontece que a situação analítica não é composta apenas de seu enquadre imaginário e do simbólico das palavras encadeadas numa fala. Há o real da presença do analista, que se alterna entre silêncio e voz. Esses elementos relacionados com as sessões presenciais como eles se apresentam no modo online?

Bem, passados alguns meses, não só mantive as análises em curso, como também recebi em entrevistas pessoas que me procuraram pela primeira vez. Ainda não posso formalizar os elementos do que tenho recolhido dessas análises realizadas no modo online, contudo posso adiantar que me surpreendo com a nova experiência. A pandemia me fez retomar e atualizar uma recomendação fundamental de Freud: “Tome cada caso como se fosse o primeiro”.

Assim, cada um de nós está sendo desafiado a criar meios de responder às emergências desse tempo que alterna dificuldades, sofrimentos e perdas com criatividade e entusiasmo. 2020 é um ano que será referência nos futuros livros de História e Literatura, filmes, peças de teatro, enfim, obras de todos os campos das Artes.

O fim do ano nos chega e precisamos de fôlego, algo vital, para transpormos o tempo, acontecimentos e rastros de 2020: um ano que vai durar além dele… Que as famílias que perderam os seus entes queridos, que todos nós que perseveramos numa aposta pela vida, possamos encontrar a chegada de novos tempos, em que nossa dor e sofrimento nos instruam sobre novas possibilidades de futuro.