Escola Lacaniana

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Uma linha

Autor: Frederico Coelho

Para Raïssa de Góes e Lia Duarte

 

I

1954-1958, Paris:

Em seu livro dedicado ao ateliê de Alberto Giacometti, Jean Genet sugere: “Para ele, é como se uma linha fosse um homem”. O dramaturgo formulou tal afirmação à partir dos desenhos que via surgir na sua frente das mãos do artista suíço em sua mesa de trabalho. A comparação entre o ser e o traço é decorrente da leitura de Genet sobre um respeito que Giacometti tinha para com a linha. Trata-la como um homem é, nessa comparação, dar à linha a dignidade de um outro. Nessa “arte de mendigos superiores”, cada ser e cada coisa ganham respeito mútuo no reconhecimento conjunto de sua solidão. Suas linhas traçam objetos e retratos, todos com a mesma força de vida. No limite, a linha de Giacometti produz para Genet uma ética.

 

II

1954-1958: Rio de Janeiro

Nos escritos dedicados ao desenvolvimento de seus trabalhos, Lygia Clark anota o que chamou de “descoberta da linha orgânica”. Deslocamento sutil entre planos da mesma cor, a artista proclama um momento de ruptura não apenas com suas compreensões relativas à pintura e à superfície da tela, mas também em relação ao seu olhar para as coisas. Lygia começa a ver a linha orgânica nas frestas dos dias, vislumbrando sua força entre tacos de madeira no chão e batentes de portas. O mundo ganha carne visual e a arremessa em um impasse. Citando a artista, “passei dois anos sem trabalhar, sem saber o que fazer com essa descoberta”. A linha, aqui, é um outro, inumano que invade e se aloja dentre os sentidos. Linha que se transformará plasticamente em casulos, em abrigos, em bichos. Explodirá o dentro e o fora e proporá o pleno ato de traça-la e cortá-la como existência estética.

 

III

Três gestos paralelos em duas cidades e mundos diferentes. Genet-Giacometti-Clark manejam linhas de uma forma cuja função gráfica transborda para uma bio. São vidas em jogo, oriundas de materialidades que reivindicam uma posição daqueles que a enxergam. Vidas que se fazem através do olhar. Genet nos propõe o respeito a um outro que é, simultaneamente, objeto e gente. Provavelmente, o rigor da linha de Giacometti em seus desenhos o remeta à dignidade necessária para todos os tipos de vidas – principalmente aqueles que, como o próprio Genet, são excluídas e exterminadas pela “boa sociedade”. Vidas inumanas. No caso de Clark, a linha é orgânica, forma uma existência em expansão invasiva e infinita. Uma intensidade que contamina seu corpo e o torce em direção a uma totalidade entre um eu humano e um outro inumano. E esse outro, eis aí a torção, está dentro e fora. Só há abertura a um outro de fora se a linha produzir também uma interioridade.

 

IV

1993:

As linhas e suas éticas para a vida continuam ressoando. Imagem potente por traçar limites e, ao mesmo tempo, ser aquilo que se esgarça, a linha que divide pode ir além da ética e da contaminação dos sentidos. Waly Salomão, um dos poucos poetas que pode reivindicar em sua fórmula única de escrita da diferença a consanguinidade com artistas como Genet e Clark, aciona sua “câmara de ecos” e nos anuncia em versos impecáveis:

 

Cresci sob um teto sossegado,

Meu sonho era um pequenino sonho meu.

Na ciência dos cuidados fui treinado.

 

Agora, entre o meu ser e o ser alheio

A linha de fronteira se rompeu.

 

A linha de fronteira não é tão distante das linhas de Genet e Clark. O primeiro, ao fazer com que o traço de Giacometti configure uma dignidade nos faz tratá-la de igual para igual. A segunda, ao propor que se incorpore a linha, dando órgãos ao  limite dos planos. Waly marca os lados do jogo. Nem iguais, nem espaciais, a linha demarca “o meu ser e o ser alheio”. A linha é existencial. Aqui, podemos trilhar duas possibilidades: ou os seres do poema são um eu e um outro no mundo (outra força); ou ambos são um dentro e fora do mesmo sujeito que, também, se torce. Eu mesmo sou meu ser e o ser alheio. Eu mesmo carrego a diferença do outro. Romper tal fronteira é fazer da linha limite político da vida. Sou o outro em mim, sou a superação da linha do outro. Talvez, ao contrário de Genet, que vê na linha de Giacometti um respeito ao outro, Waly veja a linha como contenção do mesmo. Apenas rompendo tal contenção se atinge a vida livre dos constrangimentos. Manter a linha, dessa forma, pode ser lutar por uma vida, mas também pode ser decretar uma morte.

 

V

As linhas de Genet, Clark e Waly não são as mesmas. Gráficas, pictóricas, imaginárias, escritas, pintadas, sutis ou pesadas, tais linhas são o uso de uma imagem fundamental no imaginário de toda a cultura. A linha de fuga, a linha de força, a linha do Equador, a linha do horizonte, a linha evolutiva, a linha de transmissão. Nesta fala, o deslocamento dessas linhas são, por deslizamentos, aquilo que traça a vida e a própria escrita de uma vida sem traços prévios. Há sempre um outro em nós que espreita e força a desfeita desse traço que insiste em nos contornar e conformar. Respeitar tais linhas, experimentá-las ou rompê-las são ações que podem nos levar a vislumbrar esse outro irradiador de diferenças. Ele politiza nosso traçado metafísico e nos coloca em movimento. A linha da escrita se dobra na linha desenhada que se dobra na linha da superfície que se dobra na linha biopolítica que se dobra em linhas sem fim.

 

VI

1914-1917: Praga:

Em sua célebre descrição de Odradek, o pai de família do conto de Franz Kafka nos diz que o personagem é feito de “pedaços de linha rebentados, velhos, atados um ao outro”. É um “todo que se apresenta sem sentido mas completo à sua maneira”. A inutilidade de Odradek, portanto, se configura nessas linhas que mesmo desorganizadas, produzem uma vida sem traço certo. Ao mesmo tempo, essas linhas velhas são capazes de dar à essa vida extraordinária mobilidade. Odradek não deixa se pegar e torna-se a linha incapturável. Ele é o que Jean-François Lyotard chamou de “uma força inumana de desregulação”. Além disso, o corpo de Odradek (podemos falar ali de um corpo?) não apresenta “emendas, nem rupturas”. É uma forma impossível, uma linha orgânica que impõe ao pai de família o respeito ao que mais odeia. Odradek é um outro cuja linha de fronteira é demarcada pelo olhar que o estranha. Vivo, móvel, monossilábico e inútil, ele vive para sempre. A linha em movimento faz com que o “meu ser e o ser do outro” sejam uma “fronteira móvel”, nos termos de Michel Serres. Neste caso, a visão burguesa do narrador do conto é que entra na espiral do ser e do ser alheio que o poema de Waly nos diz.  Sua vida é medida pela vida alheia do ser disforme e, ao mesmo tempo, familiar a ele.

 

Dentro do seu lar, debaixo de sua escada, algo vive sem linhas certas, sem traço, sem respeito e sem função. A incompreensão do pai de família reside aí: para ele, tudo que morre precisa ter vivido a partir de uma meta em que se optou por “um tipo de atividade e nela se desgastou”. A falta de uma vida objetiva desse emaranhado de linhas gastas o faz injustamente eterno, pois vive sem definir a priori uma utilidade. Odradek é a linha móvel da fronteira entre vida e morte, a linha orgânica que conecta mundos inconciliáveis. A linha ética que separa e costura simultaneamente a existência burguesa racional e o inumano familiar que nos espreita.

 

Se Odradek não é um desenho perfeito de Giacometti, Kafka faz com que sua narrativa obrigue o pai de família, em seu desprezo e estupefação por aquela vida sem razão, a trata-lo de igual para igual. E nesse momento, de alguma forma, assume o monstruoso dentro de si. Ou, nas palavras de Roberto Schwarz, ele se torna um “partidário inconfessado da destruição”. O pai de família, sem perceber, perde a linha que contorna sua razão.

 

VII

As vidas dessas linhas amarram existências improváveis dentro e fora do que se pensa humano. Abrem possibilidades de fazer do inumano uma ética, uma descoberta do mundo, um mergulho para fora de si. Jean Genet, Giacometti, Lygia Clark, Waly Salomão, Franz Kafka e muitos outros criadores dedicados a investigar nossos limites espalharam seres em traços, em luzes, em palavras.  Entrar em contato com seus mundos é se instalar em um espaço cujas fronteiras são borradas em prol de outras formas móveis, transformadoras e perturbadoras. Encerrando com Gilles Deleuze, tais mundos nos fazem percorrer existências em que “não há linha reta, nem nas coisas, nem na linguagem”. De alguma forma, porém, sempre há uma linha prestes a arrebentar.

 

Bibliografia

 

CLARK, Lygia. Lygia Clark – Catálogo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.

GENET, Jean. O Ateliê de Giacometti. São Paulo: Cosac Naify, 2011

KAFKA, Franz. Narrativas do Espólio. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.