Escola Lacaniana

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O inumano fantasmagórico em Edgar Allan Poe

Abílio Luiz Ribeiro Alves

(Psicanalista membro da ELP-RJ)

 

Quando ouvi pela primeira vez o poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, tive a estranha sensação de que a sua musicalidade e o seu efeito sombrio voltariam a me visitar. Talvez o corvo e a sua sombra tenham ocupado não o busto de Atena acima do umbral de meus aposentos, senão um lugar em mim. Os versos declamados por Vincent Price, ouvidos na aula de literatura de língua inglesa, deixaram ecos reverberando o seu Nevermore. Nunca mais aquela juventude perdida nas tardes das aulas de inglês em que voltava para casa a pé sonhando, devaneando sobre meu mundo íntimo habitado com minhas esperanças e medos de amor e morte. Ainda não sabia que Poe me habitava antes de conhecê-lo. Volto ao poema movido por um resto que, às vezes, é como uma bela lembrança, outras, é o meu inumano fantasmagórico. Hoje serei Poe, só hoje e nunca mais…

 Poe não escrevia propriamente histórias de terror, abordava mais os mistérios, era um desbravador de um estilo novo. Nascido em Boston na primeira década do século XIX, era filho de atores de teatro. Perdeu a mãe aos dois anos de idade, foi abandonado pelo pai. Uma família de Baltimore (Virginia), que não chegou a adotá-lo formalmente, lhe concedeu uma educação de qualidade.  Estudou Línguas na universidade, desde cedo manifestou o seu interesse e talento para a literatura. Era um jovem inquieto, metido com mulheres e bebida. Ingressou na Academia Militar e acabou expulso. Aos vinte e sete casa-se em segredo com Virginia, sua prima de treze. Sua carreira e condições financeiras foram abaladas pelo vício da bebida. Poe não desfrutou do conforto e de um bom rendimento por seu trabalho, vendia suas publicações e ganhou alguns concursos de contos. Apesar disso, o casal mantinha um bom relacionamento e companheirismo (ebiografia.com).  A tuberculose de sua esposa, o sofrimento de cinco anos e a sua morte desferiram golpes sucessivos no escritor. Ele sofreu muitas perdas, além da mãe e esposa, sofreu com a morte da primeira namorada e da mãe adotiva. Poe, em vão, buscou novamente o amor.  Contudo, a sua vida sofre uma degradação incontornável. Em sete de outubro de 1849, ele morre aos quarenta anos.  A causa de sua morte permaneceu misteriosa como a sua obra, quatro dias antes de morrer foi encontrado nas ruas de Baltimore delirando (pt.m.wikipedia.org).

The Raven (O Corvo) foi publicado em Janeiro de 1845 no New York Evening Mirror quando o escritor sofria com a doença de sua mulher. Apesar de ter sido um sucesso instantâneo, rendeu a ele apenas quinze dólares. Sendo traduzido por Baudelaire e Mallarmé em francês, por Fernando Pessoa e Machado de Assis em português, trata-se de um poema de dificílima tradução devido aos seguintes aspectos: a sua rica musicalidade, um ar sombrio original e pessoal do poeta, além de sua métrica, de seus jogos fonéticos e rimas. Um poema exemplar quanto ao estilo Romântico ou Ultrarromântico por apresentar uma visão centrada no indivíduo representada por um “eu-lírico”, drama humano frente ao amor e a morte, narrativa subjetiva e onírica, paixão e emoção que se contrapõem à razão e à objetividade, presença da imaginação popular na figura do próprio corvo como representação do mau agouro (pt.m.wikipedia.org).

Edgar Allan Poe deixou muitas obras constantemente lidas e revisitadas. Pelas razões que já expus acima, voltei ao poema que conhecera na juventude quando acabara de ingressar na universidade. Pergunto-me como algo melancólico e sombrio me envolveu tão intensamente num momento de euforia e novidade? O amor, o desejo e a morte estavam sempre muito perto de minhas cenas fantasmagóricas. Tais como aquelas que encontrei na pena do poeta, sim, quero dizer duplamente: em sua dor e escrita. Por isso, hoje aqui, busco restabelecer, como nos indica Allouch, “o macabro em sua função de suscitação do desejo no vivente” (2004, p. 17).

Seguirei a tradução de Pessoa pelo simples fato de que a musicalidade ali presente se assemelha mais com o que escuto do original em inglês (pt.m.wikisource.org):

Numa meia-noite agreste, quando eu

lia, lento e triste,

vagos, curiosos tomos de ciências

ancestrais,

e já quase adormecia, ouvi o que

parecia

o som de alguém que batia levemente

a meus umbrais.

Uma visita, eu me disse, está

batendo a meus umbrais.

É só isto, e nada mais.

As batidas ouvidas por aquele que quase adormece (tapping) levam-me ao seminário 11 de Lacan, no ponto em que cita o knocking, os ruídos que chamam ao real. O que desperta? Trata-se da homenagem à realidade faltosa _ “a realidade que não pode mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num infinitamente jamais atingido despertar” (1985, p. 60).

Se a vida é um sonho, sonhamos com o encontro sempre faltoso com Das Ding, A Coisa desde sempre perdida… Nevermore, nunca mais. Tal como os sonhos, o amor nos adormeça desse impossível, o amor faz suplência à meia-noite agreste do real e da morte. Queremos nos eternizar no amor. Mas a batida a bater na avançada hora traz o inumano, aquilo que não pode ser dito pelo humano, o falante, mas que nos chega faltosamente como corte.

Se o amor é um jogo perdido, ele lança na perdição os amantes que se querem Um, o Um eterno. Mas o que a batida da realidade faltosa nos traz é um nunca mais. Então, ninguém melhor que a morte para poder dizê-lo. Porém, a morte nada diz, nada anuncia senão através de seu mais absoluto silêncio, onde nos restará desabitar eternamente um nunca mais.

Ah, se ao menos eu tivesse o amor de minha finada amada Leonora (Lenore)! Há sempre uma esperança, há sempre uma ilusão trazida pela noite adentro, pelo sonho ou pelo poema. Fazer amor é poesia!

A morte e o eterno nunca mais nos chegam através da figura escura de um corvo, animal agourento que apenas diz: Nevermore! Poe transmuta o inumano e o indizível em fantasmagoria. Os fantasmas nos visitam, como no caso do sonhador que sonha com o pai morto que volta tal qual o ghost para Hamlet. Mas não era a sua presença que o aterrorizava, era a possibilidade de lançar sua voz que denunciaria a flor de seus pecados_ um pai em suas faltas: “Pai, não vês que estou queimando”? Toda essa fantasmagoria nos oculta justamente um nunca mais… Nunca mais a voz de um pai para um filho poderá ser ouvida: Nevermore.

Se os sonhos, os poemas e as cerimônias fúnebres homenageiam os mortos, precisamos distingui-los dos cultos e os lutos fetichistas, que asseguram a perpetuidade daqueles que nos deixaram, das perdas secas que podem ou não nos habitar. É somente o macabro da perda irremediavelmente concedida que reenvia o enlutado à posição desejante, jamais a tentativa de um reencontro com o objeto perdido, nem mesmo através de um substituto. É o que propõe Allouch em Erótica do luto (2004). Quem sabe haverá o dia em que o sujeito ao tomar o seu desejo dessa realidade faltosa fale a partir da perda irremediável e não mais aterrorizado pelos fantasmas de seus mortos!

A morte e o amor formam um par improvável e, ao mesmo tempo, constante. Não há o amor sem a presença da finitude, da morte, a minha e a do outro. O corvo é o que diria a morte se ela pudesse dizer algo.  A humanização do corvo, que fala, é um recurso do poeta que funde a amada perdida à morte_ nunca mais. O eu-lírico no poema sabe quem perdeu, não sabe, no entanto, o que perdeu nesse alguém. Jamais saberá, “nunca mais” _ diz o corvo.

“Profeta”, disse eu, profeta _ ou

Demônio ou ave preta!

Pelo Deus ante quem ambos somos

fracos e mortais

Dize a esta alma entristecida se no

Éden de outra vida

Verá essa hoje perdida entre hostes

celestiais,

Esse cujo nome sabem as hostes

Celestiais!

Disse o corvo, “nunca mais”.

Numa vertente, o corvo não é propriamente a morte, mas a representação do objeto melancólico, o objeto opaco de onde não se pode extrair nenhum traço. Tal como formulou Lacan com Freud sobre a melancolia em que “a sombra do objeto perdido cai sobre o eu”, a sombra do corvo lhe cai sobre o peito e depois se deposita no chão do aposento.

De outra maneira, o corvo é aquele que não cede ao lamento nem ao apelo do enlutado na ilusão do reencontro, pois a obscura ave teima em responder: nunca mais. Nesse sentido, o corvo poderia nos trazer uma menção ao luto de uma perda seca. É nessa dimensão significante que a ave nos oferece as duas possibilidades distintas: a do luto melancólico ou a da perda seca. Aí está uma decisão de leitura do leitor que ele adota sem saber!

E se o poema salva um afogado, como propõe Mario Quintana, Poe encontra a possibilidade sublimatória que o salva contingencialmente. A sublimação não é um recurso com o qual possamos contar definitivamente, ela é contingencial e não sabemos exatamente como essa vicissitude da pulsão se concede no sujeito.

Sublimação não é luto. Mas será que podemos estabelecer alguma relação entre a passagem de um luto melancólico para um luto atravessado e a possibilidade do sujeito retomar a sua posição desejante?

A vida de Poe, sobretudo o que se dá depois da morte de Virginia, contrasta com a riqueza e importância de sua obra:

E o corvo, na noite infinda, está ainda,

está ainda

No alvo busto de Atena que há por

sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha cor de um

demônio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no

chão há mais e mais,

E a minhalma dessa sombra que no

chão há mais e mais,

Libertar-se-á… nunca mais!

 

Se costumamos dizer que o artista precede o psicanalista, é porque a arte, em todas as suas formas de expressão, nos revela as manifestações do inconsciente. O artista usa criativamente uma linguagem que privilegia o significante para cernir o vazio, obtendo um prazer e resultado estético, é o que chamamos de sublimação: “elevar o objeto à dignidade da Coisa”. Ele guarda quanto ao inconsciente uma relação intuitiva e contingencial, um saber fazer com o não saber que o causa e que transcende o seu domínio. O mérito do artista é lançar-se num processo criativo sem garantias. A satisfação obtida na criação o abriga contingencialmente da angústia e de outros afetos devastadores.

A sublimação é uma vicissitude pulsional que encontra uma satisfação mais livre dos efeitos graves e catastróficos dos sintomas, entretanto, o sujeito permanece alienado quanto ao que está em causa na verdade de seu sintoma e desejo dedicados ao Outro. Ela não chega a permitir uma retificação da posição subjetiva. Poe compôs um poema que alcança alto grau de beleza estética, o belo recobre o sofrimento. Porém, a sua criação não resolveu a posição melancólica frente às perdas amorosas.

O final de análise nos interroga sobre um luto dos ideais investidos no objeto amado como extensão do próprio narcisismo. Um luto que levaria o enlutado a consentir numa perda irremediável e insubstituível. Essa perda se dá não apenas em termos do objeto amado, mas, sobretudo, sobre o lugar que o sujeito acreditava ocupar naquele ou naquilo que se perdeu. É com o esvaziamento dos ideais que permaneciam consagrados ao Outro que podemos não só, alcançar uma maior margem de liberdade quanto ao desejo, como ainda ocupar o lugar de causa para outro sujeito.

Acontece que para botar lenha na fogueira da boa discussão, cito uma passagem em que Safouan, respondendo a Didier- Weill sobre o final de análise e o passe, fala de sublimação:

“Há numa análise a produção de uma modificação da economia libidinal, que pode se manifestar no nível das relações sociais, das relações com o outro sexo. Se a análise é um processo que não tem fim, mas uma finalidade, é porque permite a transformação da pulsão. É assim que aparece, com essa sublimação, um novo posicionamento subjetivo: nova relação com a cultura, nova relação com o trabalho, que se torna mais eficaz, nova relação na qual o analisando cessa de ser um objeto regressivo para os pais ou cessa, se for pai, de ter com o filho uma relação regressiva” ( Quartier Lacan, 2007, p.96).

Feita a provocação, retornemos a Poe. Ele foi um errante no litoral da linguagem, banhando os pés nas águas enquanto caminhava pela vastidão e solidão das areias. Era dali que retirava os recursos e cernia a letra de sua escrita. Marcado pelas tragédias precoces de suas perdas, ele seguia ferido e inebriado pelo álcool e numa dor melancólica. A escrita o acompanhou durante o seu percurso, até onde a sua condição de sujeito pôde permitir. Deixou uma obra impressionante expressa nesse poema cuja música em uma lacuna de existência ou de memória teima ainda em se fazer ouvir em mim.

Obrigado!

 

Referências bibliográficas:

ALLOUCH, Jean. Erótica do luto_ em tempos da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

DIDIER- WEILL, Alain; WEISS, Emil; GRAVAS, Florence. Quartier Lacan: testemunhos. Rio de Janeiro: companhia de Freud, 2007.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro, 1985.