Escola Lacaniana

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Navalha na carne

Maria Teresa Saraiva Melloni – setembro 2017

Diferentemente da agressividade, a violência para Freud está determinada pela pulsão de morte, desarticulada da pulsão de vida. Portanto ele situa a violência, fora da lei fálica.
Acreditamos que Freud estava falando não da agressividade, própria da operação de alienação separação, que distingue o sujeito no mundo, mas sim do desenfreado da pulsão que circula fora dos limites da ordem humana, da civilização. Portanto, para efeito desse trabalho, preferimos usar o termo violência.
Pretendemos mostrar que a violência surge, no limite da fala, ali onde o sujeito não mais está representado de um significante a outro, e sim aprisionado sob a primazia do gozo, um mais de gozar absoluto.
Poderíamos, assim, relacionar a violência com o real impossível de se representar? Será a violência uma modalidade pulsional que não leva em conta o real como impossível?
Essas foram as questões que me surgiram, entre o significante que nomeia essa Ciranda – o inumano e a tatuagem escrita na carne, na testa do jovem: Ladrão Vacilão.
No Seminário O Sinthoma, Lacan diz: “Inventei o que se escreve como real.” (2007, p. 125)
Para logo em seguida, se referindo ao nó borromeano, dizer que o real consiste justamente em chamar de real, um dos três círculos do nó. Ou seja, que o real advém do simbólico. Assim ele considera que o real é enunciado sob forma de uma escrita, tomando valor traumático, de furo, de fora.
Essa escrita na carne teria valor de forra, de ir à forra? Tirar o forro? A pele? Escalpelar?
Deixar de fora a ferida viva, sem borda e sem beira, sem eira, sem nome?
O fato é que isso, como um grito, correu de boca em boca, de post em post e deu o que falar!
A escrita faz falar, disse Lacan, quando colocou os matemas no lugar das palavras. Mas a escrita, diferentemente do discurso, não fala, não faz laço.
 Embora sejamos estranhos solitários desconhecidos, perdidos no campo da fala, a linguagem nos aproxima, como pertencentes ao universo dos falantes.
Porque o jovem tatuador precisou fazer na testa do seu semelhante, a marca escrita de uma diferença? A fala, a denúncia, uma ação judicial que resultasse numa petição, não seriam suficientes? Afinal, como disse Freud no Mal Estar da Civilização, os grupos sociais, criam normas e representações institucionais, na tentativa de se defenderem do desfecho trágico e caótico da vida pulsional.
Quando isso não funciona, a função paterna apoiada no significante mestre, como representante da lei não opera e no seu lugar, se desenvolve uma série de acordos, regras e contratos, gadgets que servem de substitutivos. No lugar da Lei, do Pai, instauram-se outras leis e o que era impossível torna-se administrável, nas mãos do grande patrão – Superego. Em vez de metáfora paterna, teremos uma metonímia gozadora, que goza do sujeito. O S1, significante mestre, divisor do sujeito e fundador da estrutura do inconsciente, em lugar de agente é destituído e tomado no lugar de objeto, abjeto.
Os efeitos do declínio da função paterna manifestam-se em diferentes aspectos, esgarçando o laço com o simbólico, deixando a nu, a invasão do corpo como manifestação do imaginário sobre o Real.
A manifestação epidêmica da violência, presença devastadora no cotidiano das pessoas, independentemente de classes socioeconômicas, idade, cor, credo ou, até mesmo, país, é um fenômeno absolutamente atual com características próprias e diferentes de outras épocas da história da humanidade. Não estou falando das guerras, nem da inquisição ou outras formas, onde a violência é institucionalizada.
Quem não se lembra dos slogans dos anos 70: É proibido proibir!  Liberdade sem medo! Tudo é permitido! Mas eram gritos de guerra que anunciavam uma insatisfação!
Porém, se tudo é permitido não há escolha, nada é permitido, só resta o consumo e a acumulação.
Nesse momento de desalento em que se encontra o povo da nossa cidade, nosso país e o mundo, confesso-me sem esperanças para falar do Inumano. Sem expectativas, falo movida somente porque sou falante e posso falar.
Então voltemos à notícia que um de nós – falante – marcou de forma cortante, a testa de um outro humano. Um de nós que talvez desistira de falar.
Não seria esse o limite do humano? Como mostrou Lacan, no texto Lituraterra, não estaria aí a diferença entre fronteira e litoral?
Já não se fala mais da violência dentro de um contexto simbólico, temporal ou local, e sim numa mostração cotidiana do horror da Coisa em si, como fatos banalizados na publicação midiática, televisiva, globalizada da violência mundial, que se conclui pela redução da dimensão subjetiva do humano à imagem. Enfim, não é mais a violência própria do humano. Ela por si só, independente do humano vitimado, passou a ser um espetáculo.
Luiz Alberto de Freitas, no pós-facio do  livro Cidade de Deus, falando do incômodo do humano pela sua limitação em relação ao conteúdo inconsciente, nos lembra que só através da linguagem, podemos  acessá-lo. Mas a palavra verdadeira-mente, porque como nos diz Freud, ela é a morte da Coisa. Mas ao mentir, ela é verdadeira, porque põe o sujeito falante em cena, no jogo diante do Outro, radical diferença. Dito e não dito não podem se confundir com o inaudito.
Há um tempo de transgressão, em que se trata de brincadeira, de conquista de poder e reconhecimento do Eu.
Tomo alguns recortes do livro citado:
“Na rua, Ailton começou a frequentar as rodinhas dos que contavam vantagens sobre os “ganhos” em ouro e dólares, sobre dinheiro para gastar no consumo desenfreado e exibicionista.” (Zaluar e alls, p 67)
Pouco depois, começa a se instituir um código de comportamentos estabelecidos pelo grupo social, que embora transgressor, ainda tinha suas fronteiras no limite das pulsões de sobrevivência.
“No início não tinha confusão, não existia rixa com ninguém […] todo mundo tinha arma, mas era só pra sobreviver, legítima defesa, pra não morrer. […] maldade de ferir as pessoas a gente não tinha. Até porque não havia nenhuma reação quando nós íamos pegar o dinheiro. Era um tempo que não havia cofre.” (Zaluar e alls, p 68)
Já mais tarde, trata-se de romper com todos os limites, destituir o Outro, em nome do gozo absoluto a qualquer preço.
“A diversão, a brincadeira, a zoação não tinham mais lugar. Era preciso tornar-se profissional e guerreiro.” (Zaluar e alls, p 86)
No livro, essas etapas servem como apontamento para uma relação entre o delito e o contexto social, o simbólico, onde o ato criminal vai receber uma nomeação.
Depois do minucioso relato da trajetória pessoal de Ailton Batata, Freitas conclui:
“Não há saída para o problema psíquico, fora do discurso – o homem está condenado ao dizer, ao falar, tem que se dirigir a um outro, na busca incessante de sentido, de explicação para esses acontecimentos de sua vida, principalmente os de seu mundo interno”. ((Zaluar e alls, p. 284).
Mas o que estaria na raiz desse ato canibal de marcar na carne de alguém a denúncia de um atributo delituoso? “Ladrão Vacilão”. Diferentemente da marca significante, com que um pai escreve um nome, registrando seu filho, ou mesmo, que o dono da boiada marca seu gado, dizendo ” tu és meu”, a frase na testa, diz mais do seu autor do que sobre quem a carrega. Quem é o delituoso, no caso?
Porque Navalha na Carne?
Essa peça, do dramaturgo Plinio Marcos, encenada primeiramente em 1967, depois de uma forte campanha pela liberação da censura, é lançada em filme em 1969, retirado de cartaz pelo regime militar, retornando à publicação somente 13 anos depois.
Ela retrata a natureza do submundo brasileiro em que as gírias, a violência das relações humanas, a situação opressora e a luta de cada personagem constroem um quadro cuja dramaticidade sobreviveu ao tempo, sendo a obra mais encenada do dramaturgo.
Numa disputa de poder entre a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo,  esses três personagens vão, da força física às chantagens e ameaças; da sedução à humilhação; da aliança provisória entre dois, ao isolamento da vitimização e autopiedade.
O filme começa com longas cenas silenciosas, passando logo a uma sequência de sangrentas violências físicas, não permeadas pela palavra. Apenas gritos repetitivos que não fazem diálogos entre os personagens. Na medida em que as falas são introduzidas, mesmo que agressivas, a violência física, corporal, vai cedendo lugar.
Na publicação Psicanálise e pesquisa – a constituição do sujeito, os autores-pesquisadores demostram como a linguagem transforma um funcionamento fisiológico em um corpo pulsional, um corpo provido de libido, virtualidade de um sujeito portador de um psiquismo, sujeito desejante.
“Não há nada animal, nem apenas funções biológicas para estes que dependem do significante, a ponto de podermos dizer que qualquer parte de seu corpo pode ser libidinalmente investida pelo Outro. Trata-se de um corpo significante, um corpo animado pela força constante da pulsão, que se torna sexual, ou seja, que antecipado pela linguagem, torna-se um corpo desejante.” (Psicanálise e pesquisa, p. 51)
Para além da necessidade nutricional, o aleitamento ofertado por um outro humano estabelece uma relação de demanda, que introduz o desejo do Outro. Esta relação está apoiada na tensão entre o que seria a satisfação da necessidade do lado do bebê e a demanda que vem daquele que se ocupa dele. Este outro toma o bebê a partir de um conjunto de atributos, arriscando-se a supor saber o que ele deseja.
Assim, o que era necessidade, transforma-se em desejo do Outro.
Por isso, Lacan diz que não há nada de humano na humanidade, a não ser a sua singularidade, ou seja, como disse Freud, não há satisfação possível.
Por isso propõe una análise que disseque a fantasia, ou seja, desvele cautelosamente o objeto que se sonhou ser para o Outro, para que desse vazio, surja um sujeito capaz de se responsabilizar por seu gozo, sob a marcação do significante. A marca do significante, que primeiro foi traço, por um lado é letra de gozo, por outro faz sentido dentro da cadeia, deixando aí, escorrer o gozo sob forma de desejo.
“Só o amor faz o gozo condescender ao desejo” (Lacan, 2005 p. 193)
Porque esse cidadão marcou seu desafeto com uma escrita cicatrizada no corpo?
O que estava no limite do humano, que explodiu mais do que um berro, para além do significante?
Freud nos ensinou que a vida de um corpo, resulta da libido que circula pelas chamadas zonas erógenas, pontos de excitação marcados pelo investimento do Outro, produzindo uma continuidade descontínua moebiana, entre fora e dentro. Assim também, ele nos fala da reversão pulsional, sadismo – masoquismo, voyeurismo – exibicionismo, eu – outro.
Como eu dizia, acima, Lacan ao falar em Lituraterra, propõe a letra como a escrita possível, impossível de se ler, entre um gozo impossível de saber e uma possibilidade de gozo inscrito na cadeia significante, sempre referida a outro significante. A letra borda à ruptura traumática de uma marca que não fez traço nem laço. Ela faz litoral, beirando dois territórios distintos que se tocam. Assim, ela veicula o enigma de uma verdade no campo do saber.
Porém, não é de escrita que se trata na Navalha na Carne, não é de literal. É de ruptura, de fronteira, na frente, na fronte, que impõe uma separação entre dois iguais, vacilando, ambos infratores.
O que pode uma psicanálise aí? Ou o que pode um psicanalista aí?
Quantos Ailton Batata puderam ser escutados?
A religião prosperará, disse Lacan, já a psicanálise depende dos psicanalistas.
Assim, meu trabalho termina sem conclusão! Por isso apelo para a poesia.
Um traço que traça fronteira,
Nas bordas feridas de sangue,
Fura à frente uma fronte,
Num grito abafado da dor
Do outro lado da pele
Lambendo o visgo da pedra
Gemendo o sussurro de um canto
Viola a espuma em flor
E quando o dia escurece
O lume das velas estremece
O terço afiado escorrega
As rezas empurrando o andor.
Bibliografia
FREUD. Obras completas. Vol XXI. O mal-estar na Cultura. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. O Seminário, Livro X: Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 
LACAN, J. O Seminário, Livro XXIII: o Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. O Seminário, Livro XVIII: De um discurso que não seria semblante. Rio de Janeiro:
                   Zahar, 2009.
NAZAR, Teresa Pallazzo. Constituição do sujeito. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2008.
ZALUAR, A. M. et alls. Cidade de Deus, a história de Ailton Batata, o sobrevivente. Rio de
                    Janeiro: FGV ed, 2017.