Escola Lacaniana

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Amor é coisa que se aprende: Uma aprendizagem com Clarice Lispector

Amor é coisa que se aprende: Uma aprendizagem com Clarice Lispector

Por Ana Paula da Costa Gomes

 

“Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, lançado em meados de 1969, foi escrito depois de “A Paixão segundo G.H.”(1964) e antes de “Água Viva”(1973). Benjamim Moser em sua biografia sobre Clarice diz que, embora tenha virado um best-seller quando foi publicado, “Uma aprendizagem” é hoje uma espécie de órfão. Mesmo os críticos mais favoráveis a Clarice chegaram a acusá-lo de frivolidade e superficialidade. A sequência cronológica de ficar entre os monumentais citados favorece esta crítica. Mas o ilustre biógrafo diz: ” sua linguagem acessível e sua história de amor aparentemente banal mascaram uma batalha tão feroz quanto qualquer outra que Clarice tenha empreendido. Ele registra, de modo bastante literal, uma luta entre a vida e a morte, entre a lucidez e a loucura”

Na época de seu lançamento uma entrevistadora disse a Clarice: “Achei o livro dos prazeres muito mais fácil do que qualquer um dos seus sete livros. Você acha que há algum fundamento nisso? Clarice respondeu: “Há sim. Eu me humanizei, o livro reflete isso”. É o amor que humaniza o vivente. Só o amor permite ao ódio condescender à palavra.
Lacan, logo na primeira lição de seu seminário 20 “Encore” (que na homofonia da palavra em francês também é possível escutar “no corpo”), “Mais, ainda”, pergunta: “Do que é que se trata então no amor? O amor, será que – como promove a psicanálise com uma audácia tanto mais incrível quanto isto mais vai contra toda a sua experiência, e quanto mais ela demonstra o contrário – o amor, será que é fazer um só? Eros, será ele tensão para o Um? ”
“O Livro dos Prazeres” conta a história dos encontros e desencontros de Lóri e Ulisses. Lóri uma professora primária e Ulisses um professor de filosofia. Cada um em suas mestrias, experimentando a castração do saber quando a verdade do amor está em jogo. Lóri, que já teve cinco amantes, mas nunca experimentou a intimidade do amor, se deixa conduzir por Ulisses numa travessia de espera até o momento de se sentir pronta para o encontro sexual com seu condutor.
A maneira como Clarice escreve essa espera impõe a seu leitor um tempo ativo da passividade, nos fazendo lembrar de Freud ao falar da passividade da feminilidade que exige uma grande dose de atividade. Ou seja, o necessário do falo para o caminho da feminilidade. É uma travessia árida, seca.

A posição de Ulisses muitas vezes se assemelha à posição do analista, que por mais que esteja sob os auspícios do amor de transferência, não se deixa capturar nesta demanda, devolvendo ao sujeito a sua responsabilidade sobre o seu caminhar, posição ética de não ceder sobre seu desejo. Como Lóri supõe que Ulisses lhe diria: “a condição não se cura mas o medo da condição é curável”
Instante de ver. Ela se prepara para o primeiro encontro: “estava na hora de se vestir: olhou-se no espelho e só era bonita pelo fato de ser uma mulher: seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que fazia com que Ulisses a quisesse; escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase sem modelo, o modelo seria o seu próprio corpo, mas
enfeitar-se era um ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido, transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo – como podia um simples pano ganhar tanto movimento? Seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno terraço estavam da seda castanha mais antiga – bonita? Não, mulher.”
Mas o medo da condição ainda não curado lhe impede e ela liga para Ulisses para lhe dizer que não está se sentindo bem. E ele diz: “Lóri: uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um taxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.”
Neste instante de ver o encontro não se dá, mas a angústia a faz prosseguir, ali onde no espelho do olhar do Outro Lóri não se reconhece, nesse corpo que nem sequer é bonito, onde ela se imaginou fina e forte causando o desejo de Ulisses. Ele quer a alma. Mas o que vem a ser alma de uma mulher?

Lóri passa, então, ao tempo de compreender com esta questão: como entregar minha alma, minha intimidade, minha castração? Clarice, numa carta a Olga Borelli, indica: “não tenho qualidades, só fragilidades. Mas às vezes tenho esperança.” Mas Lóri retruca: “Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos”. Era preciso não entender, uma benção estranha como a de ter loucura e não ser doida.

Ulisses continua indicando: “Veja aquela moça ali, por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como anda com um orgulho natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se chama alma, tem vergonha de ter um corpo”. Lóri insiste experimentando as pequenas alegrias que vai se permitindo, ” a coragem de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir”. Prosseguir até o encontro com o mar: “Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar”
Ela e o amar, era o que Lóri vinha experimentando, numa travessia consigo mesma no que ela porta de estrangeiro. Pois o Outro do sujeito é basicamente o mesmo. São as repetições sintomáticas que o sujeito, agido por ser isso ou aquilo, se impõe. É no encontro consigo mesmo que a alteridade comparece, o estranho, o mais familiar, o súbito da angústia.
“Uma aprendizagem”, o aparente banal romance de Clarice, fala de um amor, mas de um amor que requer atravessamento subjetivo. Não de um amor passional. A dor de Lóri para se reconhecer pronta para um encontro com o outro requer que ela se experimente em seu corpo de mulher. Travessia solitária como foi sua caminhada até o mar. Mas uma mulher pode se fazer mulher, se reconhecer como tal, sem o olhar do Outro? Algo do feminino Lóri foi se experimentando, construindo. Mas ser mulher clama pelo encontro/desencontro com o Outro. O feminino é a alma da castração, que permite a construção de um corpo de mulher, que se ofereça à diferença, num encontro/desencontro com o Outro. Após o mar, Lóri começa a se sentir mais próxima dessa diferença.

Mas, ainda não estava pronta de alma. “E por enquanto ela não tinha nada a lhe dar, senão o próprio corpo. Não, nem o próprio corpo talvez: pois com os amantes que tivera, ela, como que apenas, emprestava o seu corpo a si própria para o prazer, era só isso, e mais nada. ”

Lóri nos indica outra versão da histeria que se furta ao impossível da relação sexual. A versão clássica da histeria visa o ser, busca ser amada e se furta à posição de objeto para um homem. O que vem a ser não ofertar nem o próprio corpo na relação sexual? “Pois o que chamamos de gozo sexual é marcado, dominado, pela impossibilidade de estabelecer, como tal, em parte alguma do enunciável, esse único UM que nos interessa, o Um da relação sexual. ” O que supõe Lóri para além de um prazer com o próprio corpo? Um gozo para além do fálico, obstáculo pelo qual o homem não chega a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que goza é do gozo do órgão. Lóri ilustra que uma mulher também tem acesso ao gozo fálico, mas qual a castração que ela não dava em seus encontros?

Momento de concluir. Lóri experimenta o sabor, o prazer de uma maçã. E isso abre o caminho, tal qual Adão, ao provar o fruto proibido, para o desejo. Desejar para além de ser amada. O amor ocupa lugar central na vida de uma mulher, pois é a possibilidade, através do olhar de um outro e de suas palavras, de dar um contorno à estrutural insuficiência da metáfora paterna em dizer o que é uma mulher. Desejar, entregar a sua castração é ir além da tentativa de fazer Um. Seja do Um da solidão que rejeita o laço amoroso; seja do Um da falicidade na luta entre os sexos, que refuta a diferença; seja do Um da con/fusão que faz do amor uma devastação. A relação sexual confronta uma mulher com a castração. A frigidez histérica e o não entregar o corpo são estratégias de salvar o Um. Agarrar-se ao gozo fálico para uma mulher, por vezes, é a tentativa de não deixar de ser, para não sucumbir ao sem limite do gozo feminino.

Lóri vai ao encontro de Ulisses entregar seu corpo e sua alma. E descreve seu gozo: “Ela se sentiu perdendo todo o peso do corpo como uma figura de Chagall”. Se Lacan se vale do “Êxtase de Santa Teresa D’Ávila”, na escultura de Bernini, para ilustrar o gozo feminino, Clarice se vale de Chagall, que fez algumas obras retratando seu amor por Bella, sua primeira esposa. Muitos deles mostram o casal voando pelas cidades em que moraram. Uma delas é o quadro “O Passeio”, em que Bella levita, agarrada à mão de Chagall, preso à terra.

O encontro/desencontro se dá. O livro dos prazeres termina com dois pontos:

“Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si”